Por Blog Lucio de Castro - Postado por Abraao Na Rede
“Sob
Fogo Cerrado” é um empolgante filme de amor, ação, política, ótimas
discussões sobre o jornalismo, tudo ao mesmo tempo agora. Na Nicarágua
do final da década de 70, os sandinistas estão para tomar o poder depois
de anos da sangrenta ditadura de Anastácio Somoza. Uma das cenas mais
significativas que já vi sobre um processo de transição e mudança de
poder talvez seja secundária no enredo. Mas quem já viu cena dessas
tantas vezes na vida, seja no mundo corporativo, na cidade ou até no prédio
não se esquece de enxergar o paralelo: um assassino sujo, escroque,
mercenário pró-Somoza, passa a vida boicotando a Frente Sandinista,
matando com requinte de crueldade e sabotando. Quando a Revolução vira
uma realidade sem volta, um fato consumado, e os revolucionários
adentram a capital Manágua na marcha para o poder, quem está com a
bandeira sandinista na mão? Ele, claro!
Quem
nunca viu isso? Aquele puxa-saco, geralmente os mais fieis aos chefes,
que quando muda o poder desandam a falar mal do chefe antigo pra agradar
o poder que se constitui, quem nunca viu?! O oportunista de plantão!
Pois muito bem: na última semana, quando a vitória da oposição do
Flamengo se desenhava com tons azuis mais fortes, um monte como aquele
sujeito de “Sob Fogo Cerrado” foram vistos com a bandeira azul na mão. Especialistas
em perpetuação no poder, entra administração e sai administração.
Estiveram em todas as administrações do clube nos últimos 20 anos pelo
menos. Cada uma pior do que a outra. E já viravam a casaca, desfraldando
a bandeirinha.
A cena é definitiva quanto ao futuro do Flamengo. A capacidade de identificar os oportunismos definirá os rumos da nova gestão.
Muito mais do que isso: a vontade política de recontar a história do
Flamengo nessas duas últimas décadas é a coisa mais importante e o maior
desafio da nova gestão. Entenda-se como recontar a história
principalmente rever culpados pelos malfeitos. Tenho escutado muita
coisa nos últimos tempos. Algumas preocupantes. A última delas
provavelmente a mais preocupante. Na última sexta-feira, em entrevista
no jornal O Globo, o então candidato Eduardo Bandeira de Mello afirmou
que o mandato teria o “retrovisor quebrado, que não olharia para trás e
sim para frente”.
Se verdade for, esqueçam toda a
modernidade prometida. Será a condenação do Flamengo a seguir sendo o
triste retrato que foi ao longo das últimas décadas: uma instituição
carcomida por dentro, com gente sem o menor compromisso e ligação com as
cores, apenas com interesses pessoais.
Muito se fala
em gestão, planejamento. Aumentar a receita. Tudo isso é normal e
desejável, como diz a bula. E óbvio. Mas o xis da questão, o drama do
Flamengo no momento nem é esse. Afinal, o volume de dinheiro do futebol
cresce a cada dia. O alto valor do contrato de direitos de transmissão
somado a receitas de patrocínio garantem por eles mesmo voos ousados
(claro, pode ser muito mais, ninguém precisa lembrar. Afinal, o potencial
da marca Flamengo até hoje foi trabalhado por amadores). Vale a
ressalva: o valor do contrato de direitos de transmissão nada teve a ver
com Patrícia Amorim, que chegou ao limite de se arvorar por ter
conquistado esses valores dos novos contratos. (é algo como um prefeito
do Rio querer os louros pela beleza da cidade!).
A
questão do Flamengo mais urgente, a maior, acima de qualquer outra, é a
transparência. Criar mecanismos para uma gestão transparente. Acima dos
homens porque eles são falíveis, independente do nome. O império da lei
está acima dos nomes. Prestação de contas abertas para o torcedor.
Fiscalização interna eficiente e não aparelhada. E acima de tudo, passar
a limpo a história recente do Flamengo. (Numa eleição onde as redes
sociais e a tal da webcam foram muito importantes, que elas sigam e
façam esse papel também. Tenho imensa admiração por essa galera. Da
militância por paixão, o amor incondional por uma camisa. Serão muito
mais relevantes se estiverem atentos do que se optarem pela adesão
fácil. Até porque o papel de adesão incondicional já é preenchido por
alguns na grande imprensa. E adesão incondicional se faz nos 90 minutos
de um jogo, na arquibancada. Antes e depois o torcedor deve virar
cidadão e cobrar, fiscalizar).
Sem esse absurdo e
furado discurso de “quebrar o retrovisor”. Olhar para frente é conhecer o
passado. Expurgar todos os aventureiros sim, mostrar o que houve para
que nunca mais aconteça. A comparação é óbvia: a do país que não
consegue recontar sua história, a história da barbárie dos anos da
ditadura, e vê a impunidade explodindo a cada esquina, a tortura
seguindo em cada delegacia. Sempre com o discurso do olhar pra frente.
“Quebrar o retrovisor” é alimentar a impunidade. E isso não é negociável.
Na
série de documentários que vai ao ar entre os dias 18 e 21 próximos
sobre as relações ditaduras x futebol no continente (Memórias do Chumbo-
O Futebol Nos Tempos do Condor), tive a honra de mais uma vez estar com
mestre Eduardo Galeano, que fala no episódio sobre o Uruguai. O que ele
fala abaixo está no documentário. Poderia ser sobre a necessidade de
contar essa história recente do Flamengo, combater a impunidade.
(Obviamente, nem é preciso dizer, no caso de lá muito mais grave,
estamos falando de vidas humanas).Poderá sempre ser para qualquer caso
onde se quer “quebrar o retrovisor”. Fala, Mestre:
“ Esse silêncio
é o preço da impunidade do poder, que calando consegue repetir a
história. Porque se você não aprende com o que aconteceu, está condenado
a repetir. E aí então o problema do medo. O poder militar daqueles anos
conseguiu impor uma cultura do medo. A ideia de que a denúncia do que
aconteceu é um convite para retornar ao passado, para que o passado
volte. A ideia de que só calando se evita o retorno a esses tempos
duros, ruins, essa longa noite dos nossos países. Isso é uma infame
mentira, porque na verdade só encarando a coisa como foi, recuperando a
memória, você pode evitar a repetição da história. “
Vejam isso a
seguir. Fala mais, Mestre: “Quer dizer, a impunidade estimula o
delinquente, seja um delinquente militar, civil, seja individual, seja
coletivo, a impunidade é o motor maior para a repetição dos crimes”.
“A
única maneira de você evitar que a criminalidade do sistema dominante
possa seguir atuando é a recuperação da memória. Não numa homenagem ao
passado, ao contrário, para evitar que o passado volte. Porque quando
volta, volta repetido, de maneira muito ruim. É muito terrível, eu não
quero isso de volta não.”
O clima é de euforia entre os
rubro-negros. Faz sentido. Mas entender que críticas e fiscalização são
partes fundamentais do processo abreviam o caminho.
Nenhum
rubro-negro certamente quer de volta a noite sombria onde um torcedor de
outro time comandou o clube. Onde a truculência deu o tom. O cinismo,
as calúnias. Onde ninguém sabe das contas. Onde o Flamengo foi usado
para aventuras pessoais, aparelhado para uso pessoal, interesses
políticos. E acima de tudo, reflexo disso tudo, onde o ídolo maior,
símbolo, história e memória, foi destratado pelo poder, diante da
omissão cúmplice dos mandatários. Por interesses menores. Impunemente.
Zico
deve voltar. E para que nunca mais seja desrespeitado em sua grandeza, é
preciso, no mínimo em nome dele, de que tudo seja passado a limpo.
Exposto. Assim o malfeito não volta. Já disse Eduardo Galeano, um Zico
das palavras.
O primeiro ato da nova gestão deveria ser simbólico
desses novos tempos: finalmente botar a estátua de Zico na Gávea.
Inaugurar no primeiro dia. Gávea lotada, campo aberto. E o segundo ato,
passar a limpo centavo por centavo que por ali entrou nesses anos. E
como saiu. Isso é uma obrigação moral. O contrário disso é ser mais um a
compactuar com o malfeito. Criar mecanismos para que nunca mais
aventureiros tomem de assalto o clube como nas últimas décadas, mandato
atrás de mandato.
Para que a estátua viva em paz, cultuada com o devido respeito através dos séculos.
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