terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Lúcio de Castro: Em nome de Zico

Por Blog Lucio de Castro - Postado por Abraao Na Rede

“Sob Fogo Cerrado” é um empolgante filme de amor, ação, política, ótimas discussões sobre o jornalismo, tudo ao mesmo tempo agora. Na Nicarágua do final da década de 70, os sandinistas estão para tomar o poder depois de anos da sangrenta ditadura de Anastácio Somoza. Uma das cenas mais significativas que já vi sobre um processo de transição e mudança de poder talvez seja secundária no enredo. Mas quem já viu cena dessas tantas vezes na vida, seja no mundo corporativo, na cidade ou até no prédio não se esquece de enxergar o paralelo: um assassino sujo, escroque, mercenário pró-Somoza, passa a vida boicotando a Frente Sandinista, matando com requinte de crueldade e sabotando. Quando a Revolução vira uma realidade sem volta, um fato consumado, e os revolucionários adentram a capital Manágua na marcha para o poder, quem está com a bandeira sandinista na mão? Ele, claro!
Quem nunca viu isso? Aquele puxa-saco, geralmente os mais fieis aos chefes, que quando muda o poder desandam a falar mal do chefe antigo pra agradar o poder que se constitui, quem nunca viu?! O oportunista de plantão! Pois muito bem: na última semana, quando a vitória da oposição do Flamengo se desenhava com tons azuis mais fortes, um monte como aquele sujeito de “Sob Fogo Cerrado” foram vistos com a bandeira azul na mão. Especialistas em perpetuação no poder, entra administração e sai administração. Estiveram em todas as administrações do clube nos últimos 20 anos pelo menos. Cada uma pior do que a outra. E já viravam a casaca, desfraldando a bandeirinha.
A cena é definitiva quanto ao futuro do Flamengo. A capacidade de identificar os oportunismos definirá os rumos da nova gestão. Muito mais do que isso: a vontade política de recontar a história do Flamengo nessas duas últimas décadas é a coisa mais importante e o maior desafio da nova gestão. Entenda-se como recontar a história principalmente rever culpados pelos malfeitos. Tenho escutado muita coisa nos últimos tempos. Algumas preocupantes. A última delas provavelmente a mais preocupante. Na última sexta-feira, em entrevista no jornal O Globo, o então candidato Eduardo Bandeira de Mello afirmou que o mandato teria o “retrovisor quebrado, que não olharia para trás e sim para frente”.
Se verdade for, esqueçam toda a modernidade prometida. Será a condenação do Flamengo a seguir sendo o triste retrato que foi ao longo das últimas décadas: uma instituição carcomida por dentro, com gente sem o menor compromisso e ligação com as cores, apenas com interesses pessoais.
Muito se fala em gestão, planejamento. Aumentar a receita. Tudo isso é normal e desejável, como diz a bula. E óbvio. Mas o xis da questão, o drama do Flamengo no momento nem é esse. Afinal, o volume de dinheiro do futebol cresce a cada dia. O alto valor do contrato de direitos de transmissão somado a receitas de patrocínio garantem por eles mesmo voos ousados (claro, pode ser muito mais, ninguém precisa lembrar. Afinal, o potencial da marca Flamengo até hoje foi trabalhado por amadores). Vale a ressalva: o valor do contrato de direitos de transmissão nada teve a ver com Patrícia Amorim, que chegou ao limite de se arvorar por ter conquistado esses valores dos novos contratos. (é algo como um prefeito do Rio querer os louros pela beleza da cidade!).
A questão do Flamengo mais urgente, a maior, acima de qualquer outra, é a transparência. Criar mecanismos para uma gestão transparente. Acima dos homens porque eles são falíveis, independente do nome. O império da lei está acima dos nomes. Prestação de contas abertas para o torcedor. Fiscalização interna eficiente e não aparelhada. E acima de tudo, passar a limpo a história recente do Flamengo. (Numa eleição onde as redes sociais e a tal da webcam foram muito importantes, que elas sigam e façam esse papel também. Tenho imensa admiração por essa galera. Da militância por paixão, o amor incondional por uma camisa. Serão muito mais relevantes se estiverem atentos do que se optarem pela adesão fácil. Até porque o papel de adesão incondicional já é preenchido por alguns na grande imprensa. E adesão incondicional se faz nos 90 minutos de um jogo, na arquibancada. Antes e depois o torcedor deve virar cidadão e cobrar, fiscalizar).
Sem esse absurdo e furado discurso de “quebrar o retrovisor”. Olhar para frente é conhecer o passado. Expurgar todos os aventureiros sim, mostrar o que houve para que nunca mais aconteça. A comparação é óbvia: a do país que não consegue recontar sua história, a história da barbárie dos anos da ditadura, e vê a impunidade explodindo a cada esquina, a tortura seguindo em cada delegacia. Sempre com o discurso do olhar pra frente. “Quebrar o retrovisor” é alimentar a impunidade. E isso não é negociável.
Na série de documentários que vai ao ar entre os dias 18 e 21 próximos sobre as relações ditaduras x futebol no continente (Memórias do Chumbo- O Futebol Nos Tempos do Condor), tive a honra de mais uma vez estar com mestre Eduardo Galeano, que fala no episódio sobre o Uruguai. O que ele fala abaixo está no documentário. Poderia ser sobre a necessidade de contar essa história recente do Flamengo, combater a impunidade. (Obviamente, nem é preciso dizer, no caso de lá muito mais grave, estamos falando de vidas humanas).Poderá sempre ser para qualquer caso onde se quer “quebrar o retrovisor”. Fala, Mestre:
“ Esse silêncio é o preço da impunidade do poder, que calando consegue repetir a história. Porque se você não aprende com o que aconteceu, está condenado a repetir. E aí então o problema do medo. O poder militar daqueles anos conseguiu impor uma cultura do medo. A ideia de que a denúncia do que aconteceu é um convite para retornar ao passado, para que o passado volte. A ideia de que só calando se evita o retorno a esses tempos duros, ruins, essa longa noite dos nossos países. Isso é uma infame mentira, porque na verdade só encarando a coisa como foi, recuperando a memória, você pode evitar a repetição da história. “
Vejam isso a seguir. Fala mais, Mestre: “Quer dizer, a impunidade estimula o delinquente, seja um delinquente militar, civil, seja individual, seja coletivo, a impunidade é o motor maior para a repetição dos crimes”.
“A única maneira de você evitar que a criminalidade do sistema dominante possa seguir atuando é a recuperação da memória. Não numa homenagem ao passado, ao contrário, para evitar que o passado volte. Porque quando volta, volta repetido, de maneira muito ruim. É muito terrível, eu não quero isso de volta não.”
O clima é de euforia entre os rubro-negros. Faz sentido. Mas entender que críticas e fiscalização são partes fundamentais do processo abreviam o caminho.
Nenhum rubro-negro certamente quer de volta a noite sombria onde um torcedor de outro time comandou o clube. Onde a truculência deu o tom. O cinismo, as calúnias. Onde ninguém sabe das contas. Onde o Flamengo foi usado para aventuras pessoais, aparelhado para uso pessoal, interesses políticos. E acima de tudo, reflexo disso tudo, onde o ídolo maior, símbolo, história e memória, foi destratado pelo poder, diante da omissão cúmplice dos mandatários. Por interesses menores. Impunemente.
Zico deve voltar. E para que nunca mais seja desrespeitado em sua grandeza, é preciso, no mínimo em nome dele, de que tudo seja passado a limpo. Exposto. Assim o malfeito não volta. Já disse Eduardo Galeano, um Zico das palavras.
O primeiro ato da nova gestão deveria ser simbólico desses novos tempos: finalmente botar a estátua de Zico na Gávea. Inaugurar no primeiro dia. Gávea lotada, campo aberto. E o segundo ato, passar a limpo centavo por centavo que por ali entrou nesses anos. E como saiu. Isso é uma obrigação moral. O contrário disso é ser mais um a compactuar com o malfeito. Criar mecanismos para que nunca mais aventureiros tomem de assalto o clube como nas últimas décadas, mandato atrás de mandato.
Para que a estátua viva em paz, cultuada com o devido respeito através dos séculos.

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